“Mais de 60 GW de nova demanda de eletricidade estão em espera: a nova remuneração bloqueia a solução”

A Espanha tem mais de 60 gigawatts (GW) de nova demanda de eletricidade pendente de conexão à rede. Isso inclui indústrias, centros logísticos, parques tecnológicos, usinas de energia renovável, estações de recarga para veículos elétricos, empreendimentos residenciais e data centers que precisam de acesso à energia para operar. No entanto, em muitas áreas do país, a rede de distribuição de eletricidade está saturada ou não tem capacidade suficiente para conectá-los. Essa situação, longe de melhorar, pode piorar se o novo sistema de remuneração proposto pela Comissão Nacional de Mercados e Concorrência (CNMC) for aprovado.
O problema não é técnico, mas econômico e regulatório. O novo modelo, atualmente em consulta pública, estabelece que os investimentos em novas infraestruturas de rede só começarão a ser cobrados quando houver demanda conectada efetiva. Isso significa que, se uma empresa construir uma linha para atender a um futuro empreendimento industrial ou a um parque industrial ainda inativo, ela não receberá nenhuma receita até que o primeiro cliente seja conectado. E, em muitos casos, isso pode levar de cinco a oito anos. Em áreas como Catalunha, Comunidade Valenciana, Madri, Andaluzia ou o eixo do Ebro, onde a saturação já é crítica, essa situação cria um gargalo estrutural.
Na Catalunha, Madri e Andaluzia, a saturação da rede de distribuição de energia elétrica já é crítica.O setor elétrico alerta que essa lógica regulatória desestimula completamente os investimentos iniciais, que são exatamente o necessário para liberar os 60 GW de demanda atualmente em lista de espera. A rede precisa ser construída antes da chegada do cliente, não depois. Mas se esse investimento não for remunerado até que a demanda se materialize, ele simplesmente não acontecerá. O resultado é uma brecha que desacelera a eletrificação do país e compromete seu crescimento industrial, competitividade e descarbonização.
Esta situação contradiz diretamente o Plano Nacional Integrado de Energia e Clima (PNIEC), que estabelece metas ambiciosas para 2030: pelo menos 74% de geração de eletricidade renovável, eletrificação do transporte, implantação massiva do autoconsumo e desenvolvimento de infraestrutura digital e industrial sustentável. Tudo isso requer uma rede elétrica robusta, flexível e expandida. Mas o novo quadro de remuneração não oferece incentivos reais para a construção antecipada dessa rede e, consequentemente, compromete a implementação do próprio plano do governo.
Soma-se a isso o fato de que a Taxa de Remuneração Financeira (TRF) que acompanha o novo modelo também suscita preocupações no setor. A CNMC propõe fixá-la em 6,46%, um nível inferior ao de outros setores regulados na Espanha, como o aeroportuário (8,03%) ou o de telecomunicações (6,98%), e claramente inferior ao de países vizinhos como Itália (8,1%) ou Reino Unido (7,6%). Em um contexto de altas taxas de juros e forte concorrência internacional por investimentos, essa taxa não é suficientemente atrativa para mobilizar o capital privado necessário.
O novo modelo de remuneração inclui mecanismos de eficiência que não são aplicados igualmente entre as empresas.Além disso, o modelo de remuneração inclui novos mecanismos de eficiência que são aplicados de forma desigual entre as empresas, sem reconhecer adequadamente os custos reais ou os riscos operacionais. Também não ajusta os custos operacionais (OPEX) à inflação ou ao esforço de modernização exigido pelas redes. Mais grave ainda, o sistema não inclui mecanismos de remuneração para investimentos estratégicos ou previstos, conforme exigido pelas diretrizes europeias. Tudo isso acrescenta incerteza financeira e jurídica, dificultando ainda mais o planejamento de longo prazo.
Na prática, isso significa que regiões com forte dinamismo econômico ou alta demanda por eletrificação — como as áreas industriais do País Basco, Aragão, Catalunha, Comunidade Valenciana e Andaluzia — poderão ver projetos importantes desacelerados devido à falta de capacidade de conexão. E os mais afetados serão os consumidores: tanto as empresas, que não conseguirão expandir ou eletrificar processos, quanto os cidadãos, que pagarão mais em suas contas se a rede não for dimensionada adequadamente e os custos fixos forem distribuídos entre menos usuários.
O sistema atual já apresenta sinais claros de saturação. Muitos projetos de energia renovável obtiveram autorizações de acesso, mas não conseguem se conectar devido à cobertura de rede insuficiente. O mesmo se aplica à instalação de carregadores rápidos para veículos elétricos em áreas-chave do país. A falta de fortalecimento das redes de distribuição não só atrasará a eletrificação do transporte, como também o alcance das metas climáticas.
O setor insiste que o novo sistema de remuneração reconheça o papel estratégico das redes elétricas, e não as trate apenas como infraestrutura sujeita a objetivos de eficiência de curto prazo. Construir redes hoje, mesmo que a demanda chegue amanhã, é a única maneira de garantir que os 60 GW restantes possam ser conectados no prazo e com qualidade de serviço. Mas, para que isso aconteça, é necessário um modelo que ofereça visibilidade, certeza e remuneração adequada.
A Espanha enfrenta um dilema crítico. Pode optar por um sistema que priorize o investimento antecipado, a resiliência e a implantação ordenada da rede, em linha com as diretrizes do PNIEC, ou por um que adie os retornos econômicos e prejudique o crescimento. O que está em jogo não é apenas um debate técnico, mas a possibilidade real de transformar o sistema elétrico em uma alavanca para a transformação industrial e climática. Um fracasso nesse sentido pode significar a perda de uma década crucial para o país.
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